Breves ensaios

Leituras

Escrever

 

Escrever: o que há nesse ato a não ser mistério? Antes de ser ação, é palavra, um sistema aberto e infinito. A segunda sílaba sonoriza um risco áspero sobre pedra, escrita cuneiforme e invenção, desenho correspondente de significados em movimento. O pior pesadelo do súdito do sonho é não poder escrever. Por que é tão difícil assumir que a linguagem na escrita escapa ao aprisionamento verbal?

Antes de ser ação, é estado, humanamente contestado e confessional.

Ora, escrever a alguém-ou-a-si-mesmo não seria um modo não de realizar a intensão, mas de suspender a própria ação no ato? É preciso afastar-se dos significados, do centro do logos e da razão inteligível para aproximar-se da imagem, espelhada no ato da criação.

AZEVEDO, Rafael. Escrever. In: Breves ensaios. 2024 


 

 Sarapalha

(Guimarães Rosa)


“Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai...

Não cantes fora de hora, ai, ai, ai...

A barra do dia aí vem, ai, ai, ai...

Coitado de quem namora!...”

(O trecho mais alegre, da cantiga mais

alegre, de um capiau beira-rio.)


          Dois idosos, Primo Ribeiro e Primo Argemiro, ficam dias sentados diante de uma casa decadente. Conversam sobre o passado e aguardam os instantes do efeito da maleita nos seus corpos. Na fazenda quase deserta, também vivem Ceição e um cão magro chamado Jiló, uma vez que o lugar fora devastado pela malária, dizimando parte da população e expulsando outra. Luísa era a esposa de Primo Ribeiro, mas fugiu com um vaqueiro belo, forte, que aparecia de tempos em tempos para vê-la. Para reconfortar-se desta tragégia conjugal, Primo Ribeiro sempre pede para Primo Argemiro repetir a mesma história, do homem bonito que fugiu com sua esposa rio-abaixo. Mais tarde, Argemiro confessa que fora morar com Primo Ribeiro por gostar de Luísa; afirma nunca ter dito nada a ela, sinalizando respeito ao primo. Indignado, Primo Ribeiro expulsa-o de casa. A malária ataca Primo Argemiro e, no momento que está partindo, revê Luísa e transcende. 

           O enredo, que compõe Sagarana, obra magistral de Guimarães Rosa, contém elementos preciosos para pensarmos temas relacionados à amizade, à memória, à solidão e ao estilo magistral de Rosa. Além disso, a metafísica da voz nos leva ao afundamento do ser na linguagem. Personagens solitários, que compartilham o drama existencial como qualquer pessoa, guardam na experiência humana caminhos preciosos e conhecimento.

 

           Ir para onde?... Não importa, para a frente é que a gente vai!... Mas, depois. Agora é sentar nas folhas secas, e aguentar. O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. Para, para tremer. E para pensar. Também.

 

ROSA, João Guimarães. Sagarana. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1998. 


"A respiração do tempo" (2022), de Ana Gilbert, é singular pela precisão, evidência da construção sólida dos contos, arredondados como sugerem as mais longínquas formas do gênero. Causa espanto, ao mesmo tempo respiro, personagens que, num mergulho, sufocam, retornam, em fotografias imaginárias e poéticas. Imaginárias por fabular respiros, poéticas por construí-los a partir do já existente, um dos segredos da ficção. 

Os títulos dos contos em si interferem na ordem da comunicação, como em "O gesto aquieta o medo" ou "a vida arranha" ou "realidade: a linha que nos separa". É um texto que parece ter saído de asfixias violentas, pós-pandemia, mas não se restringe a datas. Ao contrário, cria fendas no cotidiano, apresenta outros cotidianos. E, no fundo, nos enche de uma paz curiosa.


GILBERT, Ana. A respiração do tempo. Minimalista. Portugal, 2022.

       O olho de Franz Kafka ou A Contemplação

"O olho de Franz Kafka ou A Contemplação" (2023-24) é um ensaio lítero-musical composto a partir do primeiro livro de Franz Kafka (1883-1924) "Betrachtung", ou Considerações, escrito entre 1904 e 1912. A composição contém o piano como base, sustentando a melodia até a entrada dos três violinos e dos dois violoncelos, modelando-se entre a escala de si menor e a de ré maior, cujas gradações compõem entradas e saídas ascendentes e descendentes. A melodia segue solitária e contemplativa pelo caminho sonoro até ser atravessada por um som que se une a outros para acompanhá-la até a morte da música. No meio desse tempo, o olho de Kafka considera a temporalidade que o cerca, a desvincular a palavra de seu fundamento comunicativo, integrando-a a um corpo maior, a um retorno à sua essência, incapaz de ter em seu núcleo a ideologia e as camadas sociais dadas no curso da história. Com efeito, esse retorno não é a uma alienação total do que se construiu como humano, mas a um fundo infinito. Como, na ânsia de morte e na impossibilidade de morrer, Ulysses, amarrado ao mastro, ousou escutar as Sereias e frustrá-las de suas intenções mais doces e sombrias. No fundo do olho de Kafka, a contemplação do abismo. O Olho de Kafka é também a Contemplação para o absurdo da modernidade que não cessa de significar o mundo contemporâneo. O ensaio lítero-musical homenageia o escritor tcheco pelos 100 anos de sua morte: o que a palavra não alcança, a música tateia em seus silêncios. 

[Numa certa manhã, tu, Josef K., fora caluniado]

Numa certa manhã, tu, Josef K., fora caluniado. Negaste até certo ponto, quiseste seguir o curso natural do cotidiano. Entretanto, após vasculharem tua vida, o processo iniciou restrito aos teus mais fundos olhos. O que querias, K., a não ser seguir a vida na sua mais pura mediocridade? Um funcionário, acostumado aos trâmites, diligências, sessões ordinárias, despachos de papéis, ciente das intrigas nas sombras. Estavas ali, sem a ambição aparente de derrubar teus superiores. A máquina burocrática te trituraria, é certo. O advogado te ajudou, K., até certo ponto. Viste o que ocorreu com aquele processado? Como um rato rezando ao gato, implorava em uma humilhação sinistra ao seu defensor, para que não o abandonasse à sentença e à condenação. Contudo, tuas fraquezas, tuas omissões, diria até um certo grau de ingenuidade, te puseram na cilada previsível, à porta do imenso tribunal, o ponto alto de tua calúnia e teu inferno. K., como tentei te informar que tramavam contra ti! Não há outra escolha para mim a não ser reler em vão teu processo, à espera de uma brecha, uma única e ínfima fenda, para que possa interceder um dia por teu destino. Quando te movimentar em breve, K., não negligencie a calúnia. Recolha, em algum rincão do inconsciente, as folhas avulsas escritas sobre teu caso. Este eterno retorno, K., é muito, muito angustiante. 

AZEVEDO, Rafael. Para os cem anos sem Franz Kafka. In: Ensaios. Edições Fantasma: São Paulo, 2024.

                                            A propósito de "Não espera colheita quem semeia pássaros" (Editora Nauta, 2024)

          Clei Souza escreve como quem mobiliza signos transpostos à realidade poética da paciência. A causa e o efeito arrastam a palavra a outros significados, por isso instáveis, e exigem no movimento da escrita o desprendimento do pragmático, que é fonte da lógica do atual, para que se habite em outras temporalidades.

     Semear pássaros seria plantar em terra estranha algo de natureza diáfana, mas sedimentada no que é fundamental na literatura, o labor com a linguagem. Os sentidos são revoadas e, para habitar nelas, é preciso ir ao centro, à palavra, depois ao que ela significa em sua mais ampla incompletude. Colhe-se, disso tudo, outra ordem da vida.

SOUZA, Clei. Não espera colheira quem semeia pássaros. Editora Nauta: São Paulo, 2024.

Texto publicado originalmente em www.editoranauta.com.br

O paradoxo da censura na contemporaneidade: considerações

A censura e seus diversos desdobramentos configuram um exercício de autoritarismo, próprio do moralismo problemático fundado em instituições conservadoras, no sentido ambíguo da palavra conservar, ou na hipocrisia forjada nas intenções ideológicas. Censurar a arte, nesse sentido, foi e é uma práxis recorrente, às vezes aberta ao público, às vezes decidida nos porões sombrios da burocracia. Com a massificação dos meios de comunicação e o jogo de espelhamento e vigilância de um eu multiplicado nos reflexos infinitos da lógica cotidiana, a censura ganha novos sentidos à existência: se há censura, logo existo. Isso, sem dúvida, compõe a engrenagem complexa e válida das publicizações do eu e da arte em meio às infinitas demandas da vida ordinária e, com efeito, retira segmentos da arte de um limbo histórico demandado por estruturas de poderes cíclicos no relógio da democracia, quando sentem o caráter provocativo da imaginação. A economia logo se apodera, a propaganda é bélica, bandeiras se erguem para a defesa de algo óbvio na esfera do absurdo. Censurada, a arte ganha publicização: línguas, olhos, escutas, cores, gestos como linguagem espalham a indignação coletiva e chega-se ao efeito oposto do controle. É aqui que reside o paradoxo da interdição, um cogito complexo e provocante em tempos de autoritarismo ou seus resquícios adormecidos quando se evidencia a aproximação entre linguagem e realidade. A literatura, o teatro, as artes plásticas, a música e outras expressões funcionam em meio a poderosas estruturas de poder, e a censura, em sua perversa missão, refunda a curiosidade pelo objeto censurado, derivando no cogito já mencionado, que não se encerra nele mesmo. Cria, entretanto, novas linhas temporais que levam a novas significações do fenômeno.

AZEVEDO, Rafael. O paradoxo da censura na contemporaneidade