Vida

"... sei que alguma coisa entra

nos olhos, diz bem-vindo à casa que somos nós

e sai

como uma noite em sonhos livres

e tudo nos move como uno,

repartidos em diferenças como linguagem silenciada por precisão".

Vida

Rafael Azevedo, 1989, é escritor brasileiro. Natural do Estado do Pará, Amazônia, pesquisa literatura em Belém, Norte do Brasil. Publicou os contos Lavadeira de rio (Selo Off Flip, 2021) e Por dentro de rios voadores (Visgarolho, Portugal, 2022) e o poema Entre três dimensões do ser (Coletivo Mapas do Confinamento). Estreia na ficção com o romance Ecos no coração da terra (Kotter Editorial, 2021). Lágrima sobre a Pastoral (Editora Nauta, 2023) é seu segundo romance. A Amazônia, um lugar belo e repleto de contradições humanas e históricas, é uma das sementes de sua ficção. 

POR QUÊ? POR QUE COM TANTO lugar no mundo para aconte­cer este lugar se tornou justamente a casa do demônio? Os ovos cozinharam. A carne da caça salgada grelhou. A noite chegou com seus perfumes, mas tudo me é roubado. É a ausência que se espalha em mim, vasta como o campo, solitária como o homem que corre entre os ramos. Curiosamente na penumbra admito ter visto uma luz, mas são os vaga-lumes que formam a cortina bri­lhante. As nuvens se dispersam. Gotinhas de chuva, vaga-lumes e estrelas, três belos cristais reacendem nos meus olhos um ho­rizonte inalcançável. Para além da grande noite, há campos de trigo, arroz, milho, mandioca. Para além da grande noite, há a casa humilde, onde posso aninhar meu rebento entre um único abraço. Para além da grande noite, há o silêncio no vento, não há gritos, nem dor, nem baba pingando. Uma mãe deve sonhar em levar seus filhos para longe do pai faminto e feroz enquanto crescem. Uma mãe deve levar na boca a caça, até que na velhice a caça seja retribuída pelos filhos: crias que vivem anos, senão até a morte sem procurar outro lar. Que estranho hábito humano, não?! Eu, por enquanto, estou nesta casa, mas esta casa parece fria, sem tom, sem odor. Ela ou eu? Pincelo lentamente a língua nos pulsos, tem o gosto do limão com sal, da pimenta-do-rei­no, da pimenta-de-cheiro e da cebola frita. Posso entender agora, mas não é na superfície do corpo, deste imenso corpo que falo. É no fundo, no mais profundo lugar que piso, para além da alma, lama movediça, piso e lá fico, aos poucos sendo levada para o meu leito, onde não posso pedir ajuda, porque não mora nin­guém naquele lamaçal.

Uma situação horrível é esta a da ausência, como se de mim fossem roubadas todas as essências que são a minha memória: a essência ausente de ervas que mamãe me jogava, os ausentes sus­piros no meu colo, os ausentes toques na barriga grande, o ausen­te hálito no instante do amor, a ausência da ideia antes de tudo. Ausência, ausência, ausência, palavra repetitiva! Por que mimar as crianças e odiar os adultos se são os mesmos adultos que foram crianças? Por que me deixou aguentar este inferno, mamãe? É esta a independência que querias me dar? Aposto que tu algum dia rogou a sua mãe, e a sua mãe rogou à mãe dela, até rogar, numa escala regressiva, àquela índia, a mesma de que somos frutos, ma­mãe, à matriarca dos Urubus-Kaapor, de quem falavas tanto, escra­va de um holandês, de quem herdei os olhos azuis. Por que chamo por ti, mamãe? Mesmo crescidos, seremos sempre acompanhados pelos fantasmas da solidão? Fantasmas e solidão ou solidão de fan­tasmas? São duas coisas distintas, mamãe? Mamãe, estou sozinha, só, ausente, confusa.

Como compensar o terrível dano da ausência, esta palavra que insiste em ser escrita em mim? Como? Por quê? Não entendo, não entendo! Seria eu um pássaro empalhado?

Ouço garrafas tilintando. Ele e a sua mania… O filho correu pelo campo, correu com seus olhos de passarinho assustado, de passarinho que tenta o primeiro voo. Voo: a verdadeira desgraça é o voo empreendido pelo tempo, que pousa no corpo da casa, e desfigura aos poucos o que existe de significativo.

Deixo a cozinha, preciso vigiar as filhas: passo pelo quarto, Clara Onorina conversa com o espelho, enquanto escova os cabe­los. A sala está escura, acendo com um fósforo o candelabro, Elba é desvendada pela luz, está sentada na cadeira de sua bisavó, quase atrás da porta, abaixo do pêndulo; passa os dedos pela fotografia da bisavó, a que trabalhadores estão acorrentados como cães. De qualquer forma, a sua saudade é triste, a cabeça inclinada, a boca entreaberta, os olhos perdidos, voltados para dentro.

“Vem jantar, filha”, digo.

“No depósito tem mais retratos de nossa família”, ela diz. “Queria que ornassem nossa nova sala”.

Fico em silêncio, ia dizer que é melhor não, mas Murilo diz da varanda:

“Amanhã pego, Elba. A família precisa estar presente. É o mí­nimo que podemos fazer para agradecer”.

É o mínimo que podemos fazer para agradecer. Desculpa estúpi­da! Eu toco nas mãos da filha, nos dirigimos à cozinha.

Pela porta dos fundos, entram Esperança e Joanes. Trouxeram água. Eu os paro, beijo-lhes a testa. “Espero para o jantar”, digo. Elba se senta, repousa a fotografia ao lado do prato e tateia o banco ao seu lado, olho para o campo, inspiro e suspiro pausadamente.

Capítulo publicado na Revista Caliban, In Ecos no coração da terra (Kotter Editorial, 2021)